Editorial: A Rede Globo não pode ‘mais’
O que pode e o que não pode? Quem pode falar e o que pode ou não ser dito? Há um clima nefasto de patrulhamento no ar, e pior, um patrulhamento de todos sobre todos, que acaba resultando em lastimáveis episódios de explicações, autocensuras, recuos – passos quase imperceptíveis, subliminares até, para a aceitação de limites à livre expressão. Parece que a ordem é pensar bem no que vai ser dito, pensar duas vezes, filtrar as frases e o sentido. Enfim, construir um discurso oco, sem ‘intenção’. Algo como uma receita de bolo. Soa familiar?
Os fatos vêm se acumulando nos últimos meses e falam por si, mas vamos nos ater aos últimos dias. Primeiro, uma fala da candidata à Presidência da República pelo PT causou espécie porque teria feito alusão à ‘fuga da raia’ de exilados políticos brasileiros. Resultado: chiadeira generalizada, muita lenha na fogueira de todos os lados por parte da mídia (que nessa hora não poupa esforços), explicações… Esta semana, de novo, toda uma celeuma em torno do comercial de 45 anos da Rede Globo, baseado no conceito de ir além, de fazer mais (“Todos queremos mais. Educação, saúde e, claro, amor e paz. Brasil? Muito mais!” etc.). Veredicto do Júri do Pode-Não-Pode: não pode, porque lembra ‘o Brasil pode mais’ de José Serra. Resultado: recuo da Globo e retirada do comercial do ar!
E a partir de agora, todo cuidado é pouco: ninguém pode dizer ‘mais’, isso denotaria apoio irrestrito ao candidato José Serra. Já as mensagens que contiverem a palavra ‘continuidade’ estarão obviamente sugerindo um acordo com o PT. Por outro lado, o uso de tons de verde, nem que seja por uma samambaia, é PV na certa. Ironias à parte, o perigo reside precisamente nos recuos. No caso da Globo, por que retroceder, se não houve propositalidade na ação? Se houve, ao contrário, recuar faz todo o sentido e permite concluir que estão todos brincando de apontar o dedo para todos, e assim talvez obter algo em troca. As exigências de explicação por parte daqueles que se sentem atingidos podem parecer saudáveis, mais um exercício democrático, mas até que ponto não estão travestidas de censura implícita? Ora, os que se sentem prejudicados têm a justiça para defendê-los. Isso, sim, é democracia. Mas usar a palavra e o poder da comunicação como moeda de troca é fortalecer os argumentos do governo pela fiscalização da mídia, no momento mesmo em que a comunicação se universaliza e se potencializa como sendo de todos para todos.
O que defendemos e defenderemos sempre é que cada um tem e sempre deverá ter o direito sagrado à livre expressão. Democracias não sobrevivem com limitações à liberdade ou flertes com o autoritarismo de qualquer espécie. Por que a mídia deve permanecer isenta, se é muito mais saudável para a democracia que todos se posicionem claramente? Ou será que só o Presidente da República, que afinal de contas não é uma “pessoa comum”, pode se posicionar em favor de sua candidata, em pleno exercício do cargo, e dizer o que pensa, como nas incabíveis e reiteradas críticas que tem feito à Justiça e aos meios de comunicação? Então, só Lula pode ‘mais’?