REAL-SE: DA FADIGA DIGITAL À REVANCHE DA EXPERIÊNCIA FÍSICA

Entre os temas fortes que atravessam o Zeitgeist, encontra-se, sem dúvida, a oposição entre a avassaladora vida digital, de um lado, e o desejo crescente dos indivíduos por experiências reais e tangíveis, de outro. Temos visto esse debate se aprofundar, ultimamente, em diversos territórios: na gestão das marcas, no varejo, nos relacionamentos, nas redes sociais… O mercado está precisando de orientação sobre o tema, pois a sensação de desorientação é grande: se o “detox digital” virou um tema comum das conversas, o fato é que a hiperconectividade, aparentemente, só faz avançar. Afinal, em que ponto estamos, nessa polaridade?

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Em vez de “like something”, “start something”: chamada para a vida real. Imagem: ODES | internet.

Uma questão que atrapalha essa discussão é, precisamente, “ver problema” nisso tudo e colocar os dois polos em contradição. Além disso, é preciso primeiro entender que a relação contemporânea com a fadiga digital é diversa para diferentes grupos de consumidores, especialmente se considerarmos os grupos etários. Vamos olhar primeiro para os novos entusiastas do digital: a Geração Z.

VAMPING

Tecno-otimistas por definição, os adolescentes Z se entregam com toda a disposição ao universo dos games e dos vídeos online. As tecnologias de realidade virtual, que começam a se popularizar, devem aprofundar essa história. Para eles, o smartphone é sinônimo de vida. Usam intensamente o Whatsapp, no máximo o Instagram e o Snapchat, mas acham o Facebook “um saco”.

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Óculos de realidade virtual, o novo acessório da moda. Foto: TechCrunch.

Não há nada de errado com esse comportamento. No estudo Juventude e Cultura Digital – realizado em 2004, um dos primeiros estudos ODES – já defendíamos um outro olhar sobre o assunto e concluíamos que o digital fazia o papel do amigo oculto, sempre presente, permitindo ampliar a rede de relações e ser individual, ao mesmo tempo:

“A relação que o jovem estabelece com seu computador, aparentemente, toma o significado de um “amigo oculto”, aquele que assiste aos erros, às tentativas, até mesmo aos fracassos, mas que não o denuncia, e a cada tentativa e cada acerto, mais autoconfiança ele adquire. Talvez isso explique porque os adolescentes de 12-17 anos procurem tanto os games e usem as salas de bate-papo e os messengers como uma ‘falsa brincadeira’.” (Juventude e Cultura Digital, Relatório Fase 3, ODES + Sesc SP)

Para a galera de hoje, o digital é antes motivo de encontro e de socialização. A festa de aniversário de um garoto Z, de 13 anos, pode ser assim: trazer os melhores amigos para casa e passar a noite toda acordados, imersos em games online, no quarto que tem cada vez mais a cara de uma caverna digital…

Na Coreia do Sul, fazer as refeições online – sozinhos, mas conectados em grupo – é uma forte tendência.

Comportamentos como o vamping (de vampiro, mesmo) têm chamado atenção nos últimos anos: os adolescentes passam as madrugadas acordados em afazeres digitais diversos, porque de dia não dão conta, por causa da escola e dos demais compromissos…

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Vamping. Foto: Leah Nash, New York Times.

GHOSTING

A coisa começa a mudar de figura quando o foco se deslcoa para os grupos etários superiores: os millennials – especialmente os Y_dults, a faixa superior da Geração Y, com mais de 35 anos – e a Geração X. É para essas faixas que as rotinas cada vez mais tecnológicas do trabalho se somaram, nos últimos dez anos, a uma vida privada atravessada pelas redes sociais, resultando numa verdadeira fadiga digital.

Para entender, um sintoma muito forte é o que tem acontecido nos sites de relacionamentos, namoro e encontros nos EUA. Termos como ghosting (algo ou alguém “virando fantasma”), icing (“virando gelo”) e simmering (“cozinhando”) estão sendo cada vez mais usados para caracterizar as relações que, cheias de promessa e quentes no início, logo começam a murchar, a esfriar e desaparecer…

Daí que a nova tendência são os aplicativos de encontros que, a partir das interações virtuais em plataformas IRL (abreviação de in real life, permitem interagir com o outro por vídeo, ao vivo ou gravado, em movimento e direto do smartphone), promovem experiências reais, facilitando conexões com pessoas e comunidades.

O Bumble, por exemplo, instalou espaços físicos em Nova York e LA para que seus membros possam se encontrar de verdade – e não é só de azaração que se trata, tem toda uma programação na linha do self-improvement (o desenvolvimento pessoal, que é uma espécie de upgrade da auto-ajuda), parcerias com marcas, festinhas, etc.

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Espaços físicos do app de relacionamento Bumble, em Nova York e Los Angeles (abaixo). Fotos: Bumble.

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O Tonight é um app de encontros que pretende “eliminar as mensagens sem fim e possibilitar aos usuários encontros na vida real, imediatamente” (Ah, e que a cor do app, lançado em meados de 2017, seja o ultravioleta, a cor apontada como tendência para este ano, não é mera coincidência, é claro…).

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Imagens: ODES | Tonight.

Quanto aos adultos na faixa dos 40 e 50 anos, que viveram a transição da sociedade analógica para a digital, a ideia de fadiga digital é mais intensa. Na netnografia feita para o estudo Você, Cidadão (ODES, 2017) – isto é, o monitoramento de grupos online, especialmente no Facebook -, constatamos que o interesse dos adultos nos “conteúdos” dos grupos é frequentemente transitório. Eles se cansam rapidamente dos posts repetitivos e da falsa socialização forçada, à base da lei da reciprocidade (eu curto você, você me curte).

TECNO-SELETIVOS

Assim, diante da avalanche digital e da onipresença das redes sociais, o momento é mais de contratendência: uma conexão seletiva, o desejo eventual de retirar-se das redes, em prol da “vida real”. Temos visto depoimentos a favor da desconexão, mesmo para players acima de qualquer suspeita, porque são hiperdigitais – caso, por exemplo, do site Fast Company, que veio com o seguinte post: “O seu detox digital: 17 aplicativos para deletar em 2018”.

Um formador de opinião – considerado um insider da própria cultura digital – fez a seguinte publicação, recentemente, no Linkedin:

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Imagem: ODES | Linkedin.

Depois, há a questão Facebook. Notícias do tipo “8 razões que mostram que o Facebook está perdendo influência” pipocaram este mês de fevereiro de 2018, com a constatação de que a rede gigante vive uma desaceleração de seu crescimento. Usuários em queda, menor engajamento, mais regulação e conflitos com anunciantes e com a indústria de notícias são os principais fatores apontados. Mark Zuckerberg, é claro, minimiza tudo isso. Para ele, a nova conjuntura vai ao encontro da nova filosofia da empresa, que dá prioridade “às interações humanas e ao bem-estar dos usuários” (sic), em detrimento da divulgação de notícias e também de conteúdo gerado por marcas na plataforma.

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Mark Zuckerberg introduz o Space. Foto: divulgação.

O lançamento da plataforma de realidade virtual Spaces, pelo Facebook, parece confirmar essa intenção de permitir que seus membros se conectem de modo mais rico e profundo – no caso, por meio de realidade virtual – com os outros membros de seus grupos.

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Space. Foto: Facebook.

Mas a reação mais forte, mesmo, está além – e é o que chamamos de REAL-SE, a revanche das experiências físicas diante da fadiga e do desejo de detox digital.

REAL-SE

A experiência real, tangível, concreta das marcas e no varejo tem sido cada vez mais valorizada como complemento necessário à hibridação entre o físico e o digital. Há diversos e relevantes sinais que confirmam essa direção:

As lojas físicas das gigantes digitais: Amazon, Google

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Loja Amazon Go, sem caixas, em Seattle. Foto: divulgação
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Loja física Google em Londres. Foto: divulgação.

A ideia de pertencimento a uma comunidade como vantagem competitiva explorada pelas marcas – ou pelas marcas mais relevantes, hoje. A Apple, por exemplo, está revendo o conceito de suas concept stores em direção ao que está chamando de “town squares” (“praças”, lojas abertas para o tecido urbano, facilitando a integração e a vivência em seus espaços).

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Loja da Apple em Chicago. Foto: divulgação.

Experiência, bem-estar e desenvolvimento pessoal parecem ter se tornado os três pilares atuais (e mais promissores) do consumo. Eventos de marcas sobre esses três eixos acontecem com frequência cada vez maior: AirBnB Open, In Goop Health, WeWork Summer Campus, Dreamforce, Live your best life by Oprah…todos atrás do mesmo modelo – vencedor neste momento. São eventos pagos, que combinam mentoring, construção de comunidade, painéis de discussão, vendas, comidinhas e o que mais pintar e fizer sentido. De quebra, a marca se tangibiliza, isto é, ganha sentido para o consumidor, para além da relação “eu vendo-você compra”.

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Evento AirBnB Open. Foto: divulgação.
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Tendas do evento WeWork Summer Camp na Inglaterra, 2017. Foto: divulgação.

É preciso prestar atenção ao sucesso da Mega Store Cacau Show – um complexo de 2 mil metros quadrados que também tem uma academia do chocolate, museu, trenzinho com cinema, brinquedos interativos… Inaugurada no final de 2017, no km 35 da Rodovia Castelo Branco, em São Paulo, ela foi projetada para receber até mil pessoas por final de semana, mas o público já está atingindo a marca de 1.500 visitantes. O empreendimento poderia ser descrito como uma “experiência do chocolate”, em todas as suas facetas. Bingo.

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Fachada da Mega Store Cacau Show com grafite de Eduardo Kobra, o “maior do mundo”. Foto: divulgação.
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Interior da Mega Store Cacau Show, acima e abaixo. Fotos: divulgação.

 

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Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre o reganho de interesse pelo design artesanal, que pode ser lido como uma reação à “não-realidade” das tecnologias digitais. Objetos em geral, roupas, indústria do luxo e da beleza – tem muita gente indo por esse caminho. O tátil, o desejo do toque e de materialidade, a interação quente e sensorial ganham primazia para o consumidor.

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Um dos trabalhos concorrentes ao Loewe Craft Prize, promovido pela marca de luxo espanhola para valorizar o design artesanal. Foto: divulgação.

CONCLUSÃO

Não há mais dúvida de que a interpenetração entre o físico e o digital constitui uma macrotendência. Há algum tempo, falamos sobre cibridismo, outro modo de chamar essa hibridação. Em 2018 como nos últimos três anos, pelo menos, a NRF – a maior feira de varejo do mundo – insiste nessa tecla como uma das orientações inequívocas para o universo do varejo.

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Sensor wearable desenvolvido pela Universidade de Tóquio. Foto: Dezeen.

 

Isso é dado e está fora de discussão. A questão é outra: a fadiga do digital tende a ser resolvida não por uma “volta ao mundo físico”, romântica e fora de propósito, a essa altura da modernidade. Mas o digital deixa de ser um fim em si mesmo, a não ser para grupos muito específicos, para se tornar um facilitador, um catalizador de experiências de real life. Na paisagem hipermoderna, uma coisa leva à outra, simples assim.

A partir de agora, responder adequadamente a essa nova realidade que privilegia os dois polos, sem ter que escolher nenhum deles, se torna um ponto inegociável. Se o digital é um caminho sem volta, é preciso pensar em dar um REAL-SE nas estratégias de gestão da marca.

Odes