Tempo e moda

Enquanto preparamos a publicação de “A reinvenção do tempo – aceleração e desaceleração na sociedade e no consumo”, que sai em e-book nos próximos dias pela e-odes, o braço de publicações eletrônicas do Observatório de Sinais, leia o texto inédito “Tempo e moda”, de Dario Caldas, um paper de estudo que acabou não fazendo parte da publicação definitiva:

A relação da moda com o tempo tem nos intrigado desde sempre. Um clássico incontornável é Baudelaire. No texto “O pintor da vida moderna”, publicado pela primeira vez em 1863, o poeta identifica a moda com o impalpável, o transitório e o fugidio, que, para ele, definem a modernidade a cada dobra do tempo e cujo complemento necessário é o eterno, o imutável, próprios da estética clássica, com seus cânones ancorados no passado. Como se vê, faz um século e meio que Baudelaire se referiu ao efeito de aceleração sobre os estilos de vida, impresso pela efemeridade da moda (ou da modernidade, que é o outro modo de chamá-la).

 

A verdadeira novidade, no final do século XX, foi, de um lado, o arrastamento do fenômeno para o epicentro da cultura, num deslocamento que é qualitativo; e, na dimensão quantitativa, a escalada da aceleração das mudanças para um novo patamar. É como se o ritmo de mudanças que a moda imprimiu não bastasse mais para representar o nosso tempo. Desde sempre afinada com a velocidade, a moda deita e rola na aceleração, sem grandes esforços de adaptação. Foi preciso apenas dar um passo além para inventar a fast fashion, tendo as bases materiais e produtivas já no ponto certo para tal.
Voltemos um momento à relação fulcral da moda com o tempo, desde sua definição mais genérica, como ritmo marcado e perceptível das mudanças do gosto. A moda encerra todas as contradições com que nos defrontamos para analisar os próprios mecanismos do tempo – presente, passado e futuro. Fugidios como a consciência do momento, os fenômenos de moda perseguem o instante e ligam-se ao presente de maneira indelével. Paradoxalmente, porém, fazem-no melhor a posteriori, nas fotografias e imagens do passado ou como retratos de uma época, marcadores do tempo, como quis Proust. De natureza felina, sempre à espreita, a moda tem, como na canção, um olho no presente, que flutua, e o outro no futuro, na almejada modernidade de que ela é uma espécie de medida fiel. Em mais uma contradição, o futuro da moda, para aqueles que a criam, é sempre o seu presente, o que se faz e se propõe hoje, na passarela. É assim, desejando antecipar o que será amanhã, que as criações de moda acabam se convertendo na imagem mais fiel do que foi ontem, num vertiginoso movimento de fuga para adiante que se esvai na ampulheta. Tempo do passado, enfim, revisitado e presentificado pelos caprichos da moda, na retromania de uma sociedade que só entrevê como futuro um grande ponto de interrogação.

O tempo da moda é simultaneamente linear, com o seu devir perpétuo, e cíclico, no eterno retorno das tendências do gosto.

 

O desfile, momento mágico da moda, é uma crispação do tempo, que se condensa na passarela. Ao contrário dos desfiles longos de décadas atrás (que duravam, às vezes, mais de uma hora), os desfiles de hoje são tanto mais intensos quanto curtos (quinze minutos, às vezes dez). Esse momento denso e fugaz, encapsulado numa drágea, é precedido por longas esperas, uma espécie de antessala, um vácuo que serve para lembrar que a moda, no sentido de futuro, é sempre uma expectativa e uma esperança. Para que esse efeito seja obtido, a caixa preta onde o desfile tem lugar anula, suspende o desenrolar do tempo exterior. (D. Caldas)

Odes