A REAPROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO
- Publicados originalmente pela revista AbcDesign entre janeiro de 2013 e setembro de 2016.
A rua, como arena de livre expressão das identidades, é uma invenção moderna. Se essa história se inicia com o renascimento das cidades, no final da Idade Média, é no século XVIII que a ideia de um lazer em público ganha força, com a adoção do hábito dos passeios urbanos pelas cortes europeias (ou brasileira: a sociedade carioca fará o mesmo no Passeio Público, inaugurado no Rio de Janeiro, em 1783). É interessante pensar no impacto que essa exposição dos indivíduos nas ruas, que só fez intensificar-se desde então, terá para a construção das identidades. A possibilidade de ver e ser visto aprofunda a dinâmica psicológica entre diferenciar-se e identificar-se com o outro, acelerando a formação e a difusão de novos fenômenos de moda e estilo. Ao propiciar afinidades entre semelhantes, esse novo espelho que é a rua faz emergir no indivíduo o sentimento de pertencer a grupos – eis o início da história das subculturas urbanas, que tiveram seu apogeu no século XX e não cessaram, ainda, de exercer fascínio, especialmente em uma cultura dominado por valores jovens, como a nossa.
De fato, desde os anos 1950, a rua é o espaço em que a identidade jovem se constrói e se reafirma em sua essência: o Baixo Augusta paulistano, para citar um exemplo, é a atual configuração espacial, com personagens contemporâneos, de um roteiro que se repete e se desloca, de tempos em tempos, pela malha urbana.
No presente, a ressignificação da rua tem dois vetores especialmente relevantes. De um lado, as cidades passam por uma verdadeira onda de renovação e de requalificação de áreas degradas, uma tendência que é global e que não se limita mais às regiões nobres ou centrais, estendendo-se às periferias e às favelas. Esses projetos, que traduzem a necessidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas, expressam também o desejo de embelezamento dos espaços públicos, dentro da tendência mais geral à estetização de todas as esferas do cotidiano, em que o design joga um papel fundamental.
Por outro lado, estamos vivendo um processo de reapropriação do espaço urbano pelos indivíduos. Se já faz tempo que “a praça é do povo”, a vocação contemporânea da rua também é de pertencer a todos. Em 2011, a cidade de São Paulo teve suas ruas ocupadas, em média, doze vezes por dia, num total de 4.497 eventos! Foram protestos, marchas, festas, bicicletadas, feiras, “churrascões” debochados, performances as mais variadas, manifestações culturais e artísticas… A difusão da “bicicultura” é outro aspecto dessa tendência, com famílias inteiras pedalando por avenidas reconvertidas em ciclo-faixas (ainda que apenas por algumas horas, nos finais de semana). As ruas da cidade reencontram a sua vocação para o lazer, para a fruição do tempo, para uma experiência menos alienada com o entorno, mal percebido pelos indivíduos na pressa do dia a dia.
Em um cotidiano mais focado no bairro, até por conta das dificuldades de escala que a cidade apresenta, há um interesse renovado pelos arredores, um cuidado maior com a pracinha da esquina (por vezes transformada em horta urbana).
Graças às redes sociais, as pessoas debatem como nunca sobre o conforto dos pontos de ônibus ou a qualidade dos bancos públicos: o mobiliário urbano ganha relevância inédita nessa micropolítica do cotidiano, que toca os interesses mais diretos de cada um e que pode ser tão ou mais transformadora das relações sociais do que as grandes plataformas políticas, cada vez mais distantes dos indivíduos.
É claro que nem tudo é positividade. Inevitável citar a violência urbana alarmante, os processos de gentrificação promovidos pelo mercado imobiliário, a “brasilianização” dos condomínios cercados, o aumento dos acidentes de trânsito e dos conflitos envolvendo automóveis, motos, pedestres e ciclistas… Ainda assim, tendencialmente falando, os sinais de reapropriação do espaço urbano têm um significado especial para as metrópoles, porque relativizam as previsões pessimistas sobre o desaparecimento da socialidade e o enfraquecimento dos laços na urbe cruel e selvagem – excitante e dinâmica, por certo, mas aniquiladora da dimensão propriamente humana da vida… É precisamente o cenário oposto que a retomada das ruas nos faz vislumbrar.