DO CARNAVAL AO CASO OPENKOSKI: USOS (E ABUSOS) DO INDIVIDUALISMO
É verdade que, em 2018, o carnaval de rua nas grandes capitais se firmou, definitivamente, como o grande palco da diversidade – mas da diversidade em todos os sentidos, é bom que se diga. A própria palavra não admite nenhuma tentativa de apropriação exclusivista por este ou aquele grupo. O boom dos blocos em São Paulo é a justa medida dessa ideia. Tem realmente de tudo e para todos: Quer samba? Música sertaneja? K-pop? Brega? Rock? Emo? Eletrônico? Marchinhas tradicionais? Aqui tem, como tem espaço para as famílias, os bebês de colo, as meninas exibindo os seios, o povo jovem e moderno e o da “perifa”, e para quem mais vier…
Essa configuração do carnaval é mais uma manifestação do individualismo e da autonomia dos sujeitos, que deixam de seguir scripts predefinidos e se reagrupam segundo escolhas, gostos e valores próprios. Do mesmo modo, a retomada do espaço urbano por indivíduos de todos os matizes é mais uma demonstração cabal de que o desejo por contato humano está mais forte do que nunca, facilitado pela tecnologia e pelas redes sociais. São boas razões para dar vivas à hipermodernidade!
O sucesso do carnaval de rua é mais uma manifestação da autonomia dos indivíduos, que deixam de seguir regras predefinidas e se reagrupam segundo escolhas e gostos próprios.
Por outro lado, se nem tudo são flores no individualismo contemporâneo, quando se trata de utilizá-lo como argumento para fazer crítica social é fácil perder o foco e escorregar na armadilha das ideias prontas. Foi o que fez o blog O Leitor, no post intitulado O pós-moralismo do casal que desviou o dinheiro do filho doente. Referindo-se ao caso do garoto Jonatas Openkoski, o blogueiro cita o conceito de “pós-moralismo”, de Gilles Lipovetsky,para tentar explicar por que os pais do garoto desviaram uma parte do dinheiro recebido via campanha de arrecadação online (que teve, inclusive, adesão e impulso de famosos) para outros fins. Diz o post: “Desde o fim do século XX, segundo Lipovetsky, teríamos autonomia para criar a nossa própria moral e assim nos voltarmos a um individualismo que, através do consumo desenfreado, obedece a uma única e solitária lei: a satisfação irrestrita dos desejos individuais”. Nesse contexto, prossegue, pouco importariam as questões éticas envolvidas, pois “o narcisismo e o egocentrismo do nosso tempo não encontram culpas capazes de impedir os excessos mais irritantes”.
Não é a primeira vez que alertamos para os riscos de associar o individualismo, em primeiro plano, a egoísmo e egocentrismo, uma versão mais em sintonia com o senso comum do que com o significado dado a ele pelos teóricos neo-individualistas, como Lipovetsky. Mas o problema do arrazoado está em outro lugar. Desta vez, a ideia defendida é que o individualismo abre espaço para a falta de ética. Ora, é exatamente o contrário. Quando impera a autonomia dos sujeitos, a não submissão à moral coletiva significa, antes, que os indivíduos se libertam das ideologias e da moral impostas, frequentemente hipócritas, e conquistam liberdade para questionar e mudar aquilo que estava estabelecido como “bom, verdadeiro e justo”, sem o ser. É o caso, bastante atual, dos questionamentos ao politicamente correto.
Por outro lado, em quê, exatamente, a atitude do casal Openkoski tem a ver com o “eclipse do dever” coletivo? Ao contrário, o caso fala, e muito, da conduta individual dos envolvidos, e não de um “espírito do tempo” que estaria “levando as pessoas” a agirem dessa forma. Senão, teríamos que admitir que a canalhice se justifica em todos os outros níveis em que ela ocorre, neste Brasil reimerso em cinzas.
Mais pertinente a uma compreensão menos simplista do individualismo é constatar que a própria filantropia conhece um verdadeiro boom no presente
Mais pertinente a uma compreensão menos simplista do individualismo é constatar que a própria filantropia conhece um verdadeiro boom no presente, desde os indivíduos “gente como a gente”, que doam para as causas com que se identificam – como a do menino Jonatas – até as fundações dos bilionários mais poderosos (ainda que, nesses casos, haja um evidente lado comercial – mas, ainda assim, é uma boa forma de fazer marketing, não?). O novo élan da filantropia é um sinal claro de que o hiperindividualismo não levou a um achatamento da vida às dimensões do mercado, do consumo egoísta e do prazer individual a todo custo, como querem seus críticos mais apressados. Vai por óbvio que nada disso impede que os canalhas de sempre encontrem novas formas de mostrar ao mundo o quanto se pode ser desprezível.