E pur si muove
TEXTO: DARIO CALDAS/ Revista AbcDesign nº 48
IMAGEM: JULIO BOARO
A modernidade é feita de movimento constante, como já afirmava o sociólogo alemão Georg Simmel, na passagem entre os séculos XIX e XX. Não por acaso, a era moderna se inicia com a aventura dos Grandes Descobrimentos, algo equivalente a uma primeira onda de globalização na história. Um pouco mais tarde, Galileu deu o tom, tirando a Terra de uma imobilidade que só interessava aos poderosos. Nos albores da modernidade, aos homens de espírito fazia-se mister excursionar pelo “sul exótico”, isto é, a Itália renascentista e seus tesouros.
Admirar as cúpulas de Florença do alto de uma colina – para melhor apreender a cidade, como propunha Montesquieu, filósofo das Luzes e cosmopolita a seu tempo – equivaleria à sensação contemporânea despertada pela visão do skyline de Manhattan.
De lá para cá, a diminuição progressiva das distâncias pelos avanços técnicos dos meios de transportes tornou-se um traço característico da civilização ocidental, favorecendo os deslocamentos e as viagens a lugares cada vez mais distantes. No século XX, a aldeia global só fez encolher ainda mais com o barateamento e a consequente democratização das viagens, um processo que tem ocorrido com especial intensidade no Brasil das duas últimas décadas. A presença massiva das tecnologias de informação e comunicação foi outro fator decisivo para zerar as distâncias, permitindo que se “viaje” para qualquer ponto do planeta sem sair do lugar.
Como o funcionamento do social não é mecânico, não é só porque viajar ficou mais fácil e mais barato que as pessoas se puseram a fazê-lo. Viajar tornou-se parte de um estilo de vida que também cultua o novo, a mudança, a aventura, a experiência e o conhecimento de outros lugares e culturas como estratégias para alcançar uma sintonia mais fina com o próprio espírito do tempo. O cosmopolitismo tornou-se um valor altamente desejado e disseminado. Admite-se com facilidade que, para além de uma atividade simplesmente turística ou distrativa, a vivência de outras plagas enriquece a sensibilidade.
É claro que há, também, outras contingências, como as do trabalho, cada vez mais globalizado. Foi-se o tempo em que as viagens a outras cidades e países eram privilégio dos executivos nos postos mais altos da carreira. E se o fascínio do “pé na estrada” entre os jovens não é novo, tendo sido erigido em culto pela geração beatnik dos anos 1950 e 1960, hoje em dia, destituído do caráter transgressivo, tornou-se uma espécie de necessidade para completar a educação formal e o preparo exigido pelo mercado.
Equipados com as tecnologias wi-fi, os aparelhos digitais móveis vieram confirmar e coroar o anseio generalizado por mobilidade. Desse modo, celulares, notebooks e tablets são a expressão tecnológica de uma macrotendência que se manifesta também na generalização dos esportes que “deslizam” sobre pranchas (ou, até mesmo, usando o próprio corpo como suporte, como o parkour, a “arte do deslocamento”), nos mobiliários sobre rodas, nos edifícios de fachadas móveis, nas “baladas” noturnas de bar em bar, etc.
Um reflexo importante no consumo desse estado de espírito é a disposição do consumidor de mover-se o tempo todo pelo próprio mercado, no sentido de que a decisão de compra, hoje, também é mais aberta às experimentações, às novidades, às tendências, e menos comprometida com as escolhas feitas anteriormente. Em outras palavras, a figura do consumidor móvel, um verdadeiro nômade, também é a do consumidor infiel por definição.
Afinal, mover-se e trocar de posição, em vez de permanecer e ficar, tornou-se o novo normal. No entanto, nem tudo é positivo por princípio, nesse moto-contínuo social. Um ponto de vista mais crítico enfatiza que tudo aparentemente muda e se movimenta para que, no fundo, as coisas fiquem exatamente como e onde estão, simbolicamente falando.
Ou seja, o paroxismo de movimento em que todos mergulhamos está causando uma espécie de “mobilidade imóvel”. As imagens corriqueiras de congestionamentos cada vez maiores não deixam de ser uma boa metáfora para o argumento. E se é natural que nossas Florenças, hoje em dia, sejam outras, é preciso admitir que o que faz mover a maioria é menos o “espírito” do que as lojas de departamentos.