Moda e anulação de identidade, uma falsa questão
Nos últimos trinta anos, tornou-se dominante a ideia de que a moda pode ser uma forma de expressão das subjetividades e, por extensão, uma estratégia de diferenciação comportamental dos indivíduos. Assim, a moda democrática, plural e pulverizada em tendências teria substituído a moda ditatorial (de cima para baixo), monolítica e orientada por uma única tendência. Por esse prisma, tudo o que favorece a emergência dos estilos individuais deve ser valorizado, ao passo que tudo o que conduz ou induz à homogeneização deve receber um sinal negativo – e, nos dias que correm, a pecha de politicamente incorreto.
Por isso, não é raro deparar-se com ideias como as publicadas no caderno Cotidiano da Folha de São Paulo, no dia 17/11 (“Sem propaganda, grife americana vira ‘uniforme’ para adolescentes” e “Por aceitação, jovem adota uma marca que o iguala ao grupo”, link só para assinantes), sobre a adoção das roupas da marca Abercrombie&Fitch por uma parcela perceptível da classe média alta paulistana e brasileira, especialmente os adolescentes. Expressões como “uniforme”, “pressão social para ser aceito”, “massificação dos gostos” e “sufocação da subjetividade” dão o tom da reportagem e da análise que a complementa, não sem uma parte de razão: É claro que os jovens são mais suscetíveis à opinião do grupo de referência, e, portanto, mais facilmente influenciáveis pelos agentes do mercado; é inegável, também, que o consumismo empalidece o “ser” diante do “ter”, com todas as consequências já enumeradas e ainda por identificar que esse estado de coisas acarreta.
Mas será exato ler a difusão de um fenômeno de moda apenas como pressão social ou como conspiração mercadológica? Em que medida a adoção pelo indivíduo de uma ou de várias marcas pode causar a “anulação da identidade”? Trata-se de argumentos que se abastecem no senso comum, mas nem por isso têm valor explicativo. É preciso relembrar que quanto mais democrática uma sociedade, mais fenômenos de moda ela produzirá (Tocqueville). Que as modas funcionam com base em dois movimentos contínuos e complementares, o de imitação e o de distinção (Tarde), e que quanto mais houver fenômenos de diferenciação, mais fortemente os indivíduos tenderão a resguardar a sua individualidade na conformidade com os outros (Simmel), adotando as modas – e não o contrário!
A afirmação corrente de que a maioria dos consumidores deseja (leia-se, deve) o tempo todo diferenciar-se em relação aos demais, criando um “estilo único”, é mistificadora e veementemente desmentida por fenômenos como a invasão das camisas xadrezes, o sucesso do fast fashion ou a própria onipresença de marcas como a A&F…Esses movimentos do gosto coletivo se formam aleatoriamente, a partir do indivíduo, que se apropria das tendências e as devolve para o grupo. Já a alegação de que vestir-se de acordo com um modelo preponderante traria como consequência, no limite, a anulação da identidade dos jovens é mais grave, pois, de um lado, empresta às roupas um poder grande demais e, de outro, revela uma compreensão apenas parcial dos modos de manifestação do próprio individualismo que se pretendia, no princípio, defender. (Dario Caldas)