O espaço da diferença

Por Dario Caldas

Uma leitora assídua nos escreve e nos questiona sobre o horizonte político. Entre as reflexões que ela propõe, uma das mais pertinentes refere-se à preservação do espaço para a diferença, no Brasil da próxima década, em vista do quadro atual. Independentemente do debate partidário, essa questão está no cerne da política no sentido amplo e tem sido objeto de freqüentes preocupações de pensadores e analistas, nos últimos tempos.

Alguns sinais são de fato preocupantes, dentro e fora do Brasil. Entre nós, há uma corrente de opinião muito forte, que se identifica tanto com uma versão distorcida do ‘politicamente correto’ quanto com o neo-nacionalismo, propondo uma visão dominante de futuro a partir de uma interpretação unívoca do presente – e pior, desqualificando sistematicamente toda forma de desvio da versão ‘oficial’ dos fatos.

O problema é que o discurso que sustenta esses argumentos se baseia sempre em uma pretensa ‘opinião majoritária’, fazendo surgir o que alguns têm chamado de ‘democracia sem república’, isto é, a validação da vontade da maioria como verdade inquestionável, sem um arcabouço de valores (como a liberdade de expressão e o respeito a ela, um judiciário verdadeiramente independente, o próprio espaço para a diferença etc.) que garantam que a pretendida democracia responda realmente ao interesse de todos.

Afinal, ‘todos’ não podemos ser transformados em apenas ‘nós’ contra ‘eles’, ou qualquer outro arranjo simplista que remeta a uma leitura hipócrita e parcial da história recente e do momento do País. A nosso ver, os indivíduos e os grupos que pensam assim, e que são muito século XX, muito ‘quantitativos’ em sua essência (e isto não é um elogio), sentem-se como ‘heróis vingadores’ dando o troco por uma avalanche de ressentimentos e de revanches privadas, embora ‘vendidas’ ao País como de interesse público.

Para a próxima década tudo indica, então, estar se formando um ambiente em que, paradoxalmente, conceitos que tinham caído em desuso, como o de ‘ideologia’, voltam a ter valor heurístico, e como! Suprema ironia: aqueles mesmos que passaram a primeira fase de suas vidas políticas nos ajudando a desmontar as armadilhas do discurso ideológico do poder – que, em sua essência, transforma interesses de classe em ‘bem comum’ – agora operam nesse mesmo diapasão, com os mesmos mecanismos.

Trata-se de uma estratégia a rigor tão perversa quanto a censura, pois se concede o direito às bocas de falar, mas de falar somente aos surdos, pois não há quem escute de fato. Caso, porém, a mensagem venha a ser ouvida, o preço a pagar por destoar do novo discurso majoritário-dominante pode ser alto demais: o achincalhe, a desmoralização pública…

Assim, resultam como riscos para a próxima década, de um lado, a cisão classista do País, com um verdadeiro horror ao conceito de elite, e de outro, esse achatamento do espaço de legitimidade para idéias divergentes. Olhando, ainda, para o cenário internacional, os revivals da extrema direita na Europa e nos EUA, as manifestações de xenofobia e de intolerância religiosa, aliados ao medo do futuro que a crise econômica, bem mais forte nesses países, continua a semear, fazem o ‘espírito do tempo’ estranhamente convergir, lá (com contornos definitivamente mais fortes) como cá, para o mesmo e obscuro horizonte político.

Dario Caldas
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