POR QUE O VÍDEO DE DANIELA E CAETANO ESTÁ CAUSANDO TANTO
Ela, a rainha do axé, precursora do movimento musical que tomou o país de assalto, no início dos anos 1990. Ele, um dos maiores medalhões da MPB de todos os tempos. Um clipe unindo essas duas figuras numa canção de protesto e crítica social – “Proibido o carnaval” – só poderia ser o maior sucesso… Só que não. No momento da redação deste post, quatro em cada cinco internautas davam um dislike para o vídeo no Youtube (505 mil, contra 135 mil likes), gerando uma enxurrada de artigos sobre o assunto e debates acalorados nas redes. Afinal, o que deu errado?
A explicação mais fácil e, por isso mesmo, a mais simplista, é de que se trata de ação orquestrada pelas hordas odientas dispersas nas mídias sociais. Expressão da atual “onda conservadora”, tais grupos estariam inconformados e temerosos diante de tudo o que possa trazer à tona as profundezas abissais contidas na ideia de “liberação”.
No entanto, o quadro se repete, de modo idêntico e com exemplos abundantes, “do outro lado” também. Para citar apenas o mais recente, Valeska Popozuda, uma das mais populares divas da inclusão, passou a ser execrada pelo povo LGBTQ+ desde que defendeu, publicamente, a liberdade de expressão do maquiador Agustin Fernandez, por sua vez também excluído das mesmas hostes por ter declarado voto no lado “inimigo”.
Para além dos haters, dos radicalismos de parte a parte e do discurso sobre uma sociedade fraturada, exaustivamente repetido, o que pode explicar essa onda de desconexão entre os artistas, esses antigos ases da comunicação, com o público?
As conclusões do Estudo ODES Você, Cidadão (2017) anteciparam em vários aspectos o atual cenário brasileiro, inclusive no que toca ao papel dos artistas. Acreditamos ser oportuno retomar alguns dados e insights da pesquisa e aplicá-los para ajudar a entender o presente e o comportamento do indivíduo, ou do indivíduo-cidadão-consumidor-eleitor (afinal, trata-se sempre da mesma “entidade” – ou não?).
Curto-circuito da influência
O ponto inicial do diagnóstico diz respeito ao lugar ocupado pelos artistas na sociedade contemporânea: qual é o efetivo grau de influência desses atores sociais sobre a opinião pública, no presente?
Na etapa quantitativa da pesquisa Você, Cidadão, pedimos aos entrevistados que dessem uma nota de 1 a 10 para classificar o grau de influência de determinados grupos sobre suas opiniões. Mídias tradicionais, mídias sociais, família e amigos ficaram no topo da lista de influência. Os menos influentes foram sindicatos, igrejas e partidos políticos, indicando a perda de poder normativo dessas instituições. Quanto aos artistas e celebridades, ficaram bem no meio do espectro, com média ponderada 5, junto com as marcas.
Esse resultado reflete, ao mesmo tempo, a forte presença desses atores na paisagem social, eivada, porém, de um distanciamento crítico crescente por parte dos indivíduos. Isso ficou mais claro quando, em outra pergunta, quisemos saber em quais grupos sociais as pessoas mais confiam como origem de notícias compartilhadas nas mídias sociais. Artistas e celebridades foram o segundo grupo em que as pessoas afirmaram confiar menos, com 15% das citações dos entrevistados, atrás, somente, dos políticos, que tiveram 14% de menções.
Ao aprofundarmos essa discussão nas entrevistas individuais e em grupo da fase qualitativa da pesquisa, emergiu com muita força o distanciamento crítico dos pesquisados (independentemente de orientação política) em relação ao posicionamento dos artistas, sobretudo quanto à idoneidade, à lisura e aos interesses em jogo, por trás da defesa de determinados valores. É o que demonstram essas afirmações de entrevistados:
“Tem que filtrar [o que eles dizem], o artista vive de patrocínio”.
“Estamos vivendo um momento onde tudo tem um preço. Existe uma linha tênue entre a defesa de uma causa e o que está sendo feito por dinheiro”.
É o mesmo raciocínio que o consumidor aplica às marcas. De fato, a desconfiança é uma das características mais marcantes do indivíduo contemporâneo.
Assim, se é verdade que os artistas continuam sendo vetores inegáveis de influência, o fato é que eles não conseguem mais influenciar as pessoas a ponto de fazê-las mudar de opinião.
Basta pensar no que aconteceu nas últimas eleições. Se a opinião dos artistas ainda tivesse um peso decisivo na orientação das condutas e das escolhas, o resultado teria sido outro, já que a classe artística em peso apoiou o projeto derrotado.
Com a implosão do sistema de influências, a voz do artista tornou-se mais uma entre tantas.
Até o final do século XX, os artistas eram considerados como o “farol da civilização”. Eram admirados, reverenciosamente ouvidos e imitados. Daniela Mercury, por exemplo, ainda está impregnada dessa ideia de superioridade da arte. Ao comentar o episódio em suas redes sociais ela afirmou que “a finalidade da arte não é agradar”, mas sim “elevar”.
É possível. Mas o indivíduo do século XXI simplesmente desconhece vacas sagradas, e vai além, faz questão de pisar nelas sempre que a oportunidade se apresenta. Com a implosão do sistema de influências, a voz do artista tornou-se mais uma entre tantas. Hoje, todo mundo tem argumentos. Ninguém mais detém o monopólio da expressão e, muito menos, o de uma razão “superior”.
Esse novo contexto é especialmente difícil para setores ou atores que, até pouco tempo atrás, detinham o poder da palavra – o que, frequentemente, era sinônimo de ter razão, também. No presente, haverá sempre o contraponto, geralmente por intermédio das redes sociais, tão criticadas. Nesse quadro, sofrem, especialmente, as marcas, a chamada grande imprensa, os políticos, os líderes religiosos, os intelectuais… e os artistas.
Liberdade, acima de tudo
A maioria dos pesquisados se posicionou muito claramente a favor da livre expressão de opiniões e ideias. Na pesquisa, quisemos saber se as pessoas concordavam ou não com a seguinte afirmação: “Eu tenho muito respeito por artistas e celebridades que expressam publicamente suas opiniões sobre causas e política”.
Resultados: 63% dos entrevistados concordaram, enquanto 15% discordaram e 22% se declararam indiferentes.
Esse resultado foi ratificado por outra questão, sobre a concordância ou não com a seguinte frase: “Artistas e celebridades deveriam se concentrar no que fazem de melhor e ficar fora das causas e da política”.
Resultados: 58% discordaram, enquanto 26% concordaram e 16% se disseram indiferentes.
Por outro lado, nas entrevistas em profundidade, a tendência majoritária entre os entrevistados foi a de que usar o palco ou um show para fazer protesto invade o direito do indivíduo de ter opinião contrária, prejudicando a sua especial admiração pelo artista. Todos querem ir aos shows e ouvir as músicas – mas o indivíduo não está disposto a pagar o pedágio da crítica social e política, que ele percebe como uma extensão nociva da pregação do “nós contra eles”.
Portanto, é preciso ter claro que, com exceção das franjas onde se situam os militantes mais exaltados, a maioria não tem nada contra a defesa de opiniões e pontos de vista contrários aos seus, sejam quais forem. O problema para o indivíduo é mais de forma do que de conteúdo e toca, via de regra, no ponto muito sensível da desqualificação de seu próprio ponto de vista pelo outro. O sentimento de ser menosprezado ou incompreendido tornou-se insuportável: “Quem é você para dizer que sou tacanho ou atrasado, porque não compartilho de suas crenças e opiniões?”. Como o consumidor, que luta por seus direitos, o indivíduo quer ser respeitado nas suas razões – pelos políticos, pelos artistas, pelas marcas – e se sente invadido em sua própria individualidade, quando o outro abusa do poder que lhe foi dado para impingir as suas convicções.
O problema para o indivíduo é mais de forma do que de conteúdo e toca no ponto sensível da desqualificação de seu próprio ponto de vista.
Que fique claro, mais uma vez, que não se trata de um problema exclusivo da classe artística. A verdade é que ninguém mais tem o poder de “fazer a cabeça” de ninguém. E essa talvez seja a definição mais lato sensu para individualismo. Aliás, é esse, também, o verdadeiro significado de empoderamento, uma palavra tão usada e tão pouco compreendida. A ideia de rebanhos obedientes comandados por poderes mais ou menos identificáveis – a Igreja, o Partido, o Sindicato, a Televisão, o Capital, a Marca, a Opinião Pública, o Bom Gosto, o Politicamente Correto, etc. – não se sustenta diante de uma análise isenta sobre os fatos. Esse tempo acabou com o século XX e recebeu a sua definitiva pá de cal com o advento das redes sociais, que deram voz e legitimidade a todos os indivíduos e a todos os grupos. Todos.
Conclusão
Para além das críticas às redes sociais e do debate se suas narrativas são fake news ou não, a verdade é que o indivíduo tomou posse de sua opinião.
Induzido ou não, ele crê piamente que a sua opinião deve prevalecer sobre a de qualquer artista – até porque a pesquisa mostrou que ele não se sente suficientemente respeitado, nem pelos artistas, nem pelas mídias tradicionais. Não se trata de um indivíduo tolo, facilmente manipulado, como querem fazer crer. Ao contrário, identificamos um forte sentimento de ofensa, quando vozes se levantam para afirmar que as pessoas (via de regra, “do outro lado”) estão sendo enganadas.
O indivíduo de hoje assume a responsabilidade quanto às notícias que lê. Ele sabe recuar, avançar e interagir com a verdade que construiu. Os artistas e as mídias precisam trabalhar a favor desse novo ator social, que definimos, em nosso estudo, como o “indivíduo-eleitor-consumidor”.
O indivíduo está ávido por uma real e efetiva imparcialidade. Agora, vemos crescer a controvérsia sobre o filme “Marighella”, de Wagner Moura. Antes de tudo, é preciso destacar a importância e o valor da iniciativa. Trata-se de fatos da história do Brasil que merecem todo o respeito. No entanto, concordar ou não com a narrativa é o que menos importa para a arte! A arte só precisa existir…
É hora de colocar um freio de arrumação nisso tudo, até porque esse estado de conflituosidade permanente e improdutiva interessa apenas aos que querem a continuidade do status quo, não à maioria que deseja mudanças. A pesquisa Você, Cidadão também deixou claro que 75% dos entrevistados têm convicção de que os dois lados estão certos, os dois lados estão errados e o que o cidadão mais deseja é, apenas, “exercitar o direito de concordar em discordar”. Simples assim.