UNDER_LINE
IMAGEM Drago/selvaSP
…ou de como o underground está ganhando momentum
Nos últimos anos, as atenções estiverem voltadas muito mais para hits e best-sellers do que para manifestações marginais, alternativas ou subterrâneas. Até porque os segredos não duram muito, no maravilhoso mundo em rede. Se é verdade que a cultura digital abriu caminho para fenômenos bottom up, fragmentando a oferta de informação e as mídias, não é menos verdade que tais fenômenos – Justin Bieber ou Luan Santana, Kéfera ou McGuimê – só se tornaram o que são quando caíram nas graças do mainstream.
Até mesmo a atratividade dos nichos vem sendo questionada. A economia da “cauda longa” sofreu revisão por mais de um think tank mundo afora, recolocando a força do consumo massivo em absoluto primeiro lugar.
Em consequência, o normal foi elevado à categoria de desejo “quase” transgressivo (por paradoxal que isto seja) de um consumidor que preferiu adequar-se às normas exteriores para poder resguardar, em receptáculos imperscrutáveis, o mais íntimo de sua individualidade.
Mas, como tudo cansa, passa ou se transforma, também a força arrebatadora e irresistível do mainstream começa a dar sinais de fadiga – pelo menos, para uma parcela crescente de jovens e de adultos jovens, partícipes oficiais da Geração Y, mas vetores de inflexão em relação àquilo que o estereótipo Y havia trazido em termos de comportamento e consumo.
Um dos aspectos mais excitantes dessa nova sensibilidade é o cansaço generalizado das configurações do “capitalismo fofo”, erigidas em formas pregnantes incontornáveis, na última década.
OS TEMPOS SÃO BICUDOS E HÁ POUCA DISPOSIÇÃO DE ESPÍRITO PARA ESSA ESPÉCIE DE MOLEZA AÇUCARADA QUE SE GLOBALIZOU COMO NOVO NORMAL.
Quem aguenta mais um smile, mais um “<3” ao fim das mensagens de texto, outro pedido educadinho por “mais amor”? Coletivos idílicos vivendo e colaborando sem conflito, a harmonia tediosa das “bandas mais bonitas da cidade” (da música, nem se fale), a necessidade extrema de tato para não ferir suscetibilidades exageradamente a flor da pele (pode/não pode) e a capa obscurantista do politicamente correto pesando sobre os ombros… O bom-mocismo carregou demais nas cores e a fofura tornou-se exaustiva.
Os tempos são bicudos e há pouca disposição de espírito para essa espécie de moleza açucarada que se globalizou como novo normal.
O que aconteceu com a cultura gay nas últimas décadas foi um sinal revelador da perda de apelo do underground. Há vinte anos, a cultura gay era vanguarda. Ser gay era desafiar a ordem. Hoje, é fazer parte dela. Um bom exemplo dessa mudança de status encontra-se nas mídias. Se há pressão para que personagens homossexuais surjam com mais frequência em séries, HQs e novelas, a reivindicação da maioria é por tipos normais, não por estereótipos sexualizados.
Assim, de uma subcultura desafiadora do establishment e corrosiva por definição, a normalização gay teve como efeito colateral o esvaziamento de seu poder questionador – e foi-se, de quebra, boa parte de seu antigo charme.
Em contraponto ao rolo compressor mainstream, há uma nova energia no ar que faz apelo à subversão, ao underground e à contracultura como antídotos à normalidade boring e asséptica. Reganha interesse, nitidamente, uma nova linha “sub”, ou sob os pilares da cultura oficial, como reação aos excessos de bom-mocismo.
O ODES identifica nesse movimento uma verdadeira macrotendência, que será chamada de UNDER_LINE.
A SENSIBILIDADE UNDER_LINE SUGERE A VOLTA DE ESTRATÉGIAS QUE PREENCHAM OS VAZIOS DE SENTIDO NA VIDA DAS PESSOAS.
A referência ao ícone “underscore”, ou traço inferior, nos parece ainda mais sugestiva ao pensarmos que ele foi criado em plena era analógica, no tempo da máquina de escrever, quando palavras como “vanguarda” ainda faziam algum sentido.
Na informática, o underline é usado para preencher os espaços em branco e para unir blocos que ficaram na superfície. Do mesmo modo, metaforicamente, o que a sensibilidade UNDER_LINE sugere é a volta de estratégias comportamentais, culturais e de consumo que possam de algum modo preencher os vazios – os imensos, frequentes e inóspitos vazios de sentido, vácuos existenciais que o capitalismo tardio vai cavando, irremediavelmente, na vida e na alma das pessoas.
ALGUNS SINAIS
O auge do “zen-mocismo” anuncia seu eclipse
Nova York, hoje, é praticamente a imagem de uma boa moça praticando aulas de ioga coletivas, em grupos cada vez maiores, públicos, nos jardins defronte aos museus…
[fullwidth_div] As antenas ODES, porém, apontam que a capital do mundo resolveu prestar atenção no revival da noite underground.[/fullwidth_div]
Festas conceituais, com música, arte e performances instigantes criam experiências cheias de atmosfera, mais viscerais, menos “zen-mocistas”.
Em Paris, na recém-terminada semana de moda inverno 2016-2017 (lá, as fashion weeks ainda contam), não se falou de outra coisa, a não ser do poder corrosivo das vanguardas comportamentais, inspiradas por movimentos under como o punk e o grunge.
E SP, que sempre cultivou ciosamente seus porões, acaba de ganhar uma exposição sobre a noite underground .
Hard show
A última temporada da TV (paga, bien entendu) indicou como novo filão a esquisitice com sangue, fetiche, humor negro e o estímulo de sensações afetuais no telespectador (aquelas que fazem sentir na própria pele). Se você pensou nos anos 1990 e em Twin Peaks como referências, sim, mas multiplique por dez. Aliás, o que foi aquele elenco de American Horror Story Hotel, que engata segunda temporada? E a série Scream Queens, produzida pelo pessoal do Glee?
Para entender melhor o clima sombrio e esquizoide de que estamos falando, é preciso chamar o vídeo recém-lançado de ninguém menos do que o grupo cult Massive Atack featuring Young Fathers. Prepare os nervos.
Fênix
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Na moda, a onda UNDER_LINE está alimentando um princípio de reação desse setor em crise de identidade, com uma nova geração de criadores mais propensa, aparentemente, a transgredir.
Há um anseio generalizado de reposicionamento das marcas de prêt-à-porter de luxo de se contrapor ao establishment erigido pelo big retail à la H&M. É o caso, especialmente, do coletivo parisiense Vetements, sensação da última Paris Fashion Week, que foi assombrada pelo espírito do enfant terrible Martin Margiela (o original, não o que a marca que leva seu nome se tornou).
Em termos de estilo, diríamos que a aposta vai no sentido de criar um “des-normal”, para desconstruir a noção de normalidade que andou tão presente, flertando com um público afinado com um gosto mais difícil. Não é diferente do que estão fazendo o próprio Damna Gvsalia na Vetements e em sua estreia para Balenciaga, Alessandro Michele para Gucci ou Marc Jacobs em seu último desfile (este, com uma escala no imaginário de Tim Burton, cuja obra também está entre nós).
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UM TAPA NA CARA AO EXCESSO DE EXPERIÊNCIA SENSORIAL SEM CRIVO CRÍTICO[/fullwidth_div]
A fantasmagoria de Banksy
Dismaland, a versão para parques temáticos do artista inglês Banksy, foi sem dúvida o evento divisor de águas no campo da arte, dentro da sensibilidade UNDER_LINING. Com seus barcos de imigrantes, golfinhos saindo de latrinas e balões “I’m stupid”, Dismaland foi um tapa na cara da business art bem pensante e ao excesso de experiência sensorial sem crivo crítico, que assombra o mercado em geral e o mundo das artes, em particular. Bad, na veia.
Deep web etc.
Por fim, mas não menos importante, novas culturas digitais afloram na internet, contrapondo-se aos movimentos de massa das redes sociais. São novas formas de produzir, consumir e viver o digital, em maior ou menor medida, em redes alternativas ou de modo individual, de acordo com o estilo de vida de cada consumidor. Esse movimento só tende à intensificação, à medida que a nova geração Z vai ganhando corpo e personalidade própria.
CONTRATENDÊNCIA, APENAS?
Deve a sensibilidade UNDER_LINE ser entendida, apenas, como uma contratendência em ascensão? Na verdade, acreditamos que este seja um ótimo exemplo do novo funcionamento das tendências, a ponto de ser necessária uma revisão da “regra de ouro” da metodologia dos sinais: a saber, o par conceitual “tendência versus contratendência”.
Não que essa regra tenha se exaurido. Porém, torna-se premente ir além do esquema binário, sob risco de simplificarmos demais e perdermos a medida da crescente complexidade das tendências.
A relação do UNDER_LINE com o campo do digital é estratégico para entender essa discussão. Se é verdade que a uma web mainstream opõe-se uma deep web totalmente underground, também é fato que há outros modos de não ser mainstream, como a low connectivity, e de não ser totalmente underground, como as práticas que mudam o modo de se apropriar da web sem negá-la, nem ficar fora dela (e que os franceses gostam de chamar de backslash). É o caso, por exemplo, das formas de “consumo imaginário” que o digital vem favorecendo, como as wish lists. Trata-se de novas formas de consumo cada vez mais importantes, com impactos crescentes sobre o consumo “real”.
MAPEAMENTO: DIGITAL x UNDERLINE
UNDER_LINE E BRANDING
Para as marcas, o novo território UNDER_LINE é promissor, pois resgata todo o charme e atratividade que as culturas alternativas sempre entregaram. Apresenta, porém, a dificuldade de como fazer o discurso evoluir para manter-se dentro dele, sem ser tragado novamente pelo mainstream e esvaziar-se.
Temos aí uma problemática clássica, que esteve fora da agenda nos últimos anos, mas que volta com muita força na gestão das marcas – especialmente, é claro, para aquelas que quiserem construir tal posicionamento. Sem contar que novas questões certamente vão emergir no território UNDER_LINE. Quanto a nós, continuaremos atentos aos sinais…