NOVO COMPORTAMENTO POLÍTICO DO BRASILEIRO É DECIFRADO PELO ESTUDO VOCÊ, CIDADÃO
O blog Sinais resume as conclusões sobre comportamento do eleitor e política, produzidas pelo estudo Você, Cidadão, realizado pelo ODES em 2017. Acompanhe.
O universo pesquisado no estudo Você, Cidadão, de indivíduos com idade entre 35 e 59 anos, foi escolhido por duas razões: para completar o painel dos comportamentos de consumo, iniciado com o estudo Depois de Amanhã: Consumo e comportamento jovem no Brasil (2016), que teve os menos de 35 anos como foco; e por causa da forte presença desse público nas manifestações brasileiras, que culminaram no impeachment de Dilma Roussef. Diante da constatação de que um novo ator político estava emergindo, pareceu-nos fundamental investigar como pensavam e se comportavam os indivíduos nessa fase intermediária da vida, que concentrava, em 2017, cerca de um terço (32,7%) da população brasileira, com forte tendência de crescimento, nas próximas décadas.
A mídia internacional, num primeiro momento, classificou os protestos como sendo de pessoas “mais velhas, mais brancas e mais ricas”. A leitura mais frequente para esse fato foi a associação tradicional entre pessoas mais velhas e posturas conservadoras e “de direita”. Assim, tratou-se de naturalizar as clivagens jovem/pobre/esquerda e velho/rico/direita, uma nova forma de reiterar o “nós contra eles”. Decidimos averiguar se isso era verdadeiro.
De um lado, nossa pesquisa permite afirmar que, grosso modo, os grupos etários mais velhos, especialmente os mais de 40 anos, na verdade se comportaram como a verdadeira resistência na crise política brasileira. Mostraram-se defensores de ideais e bandeiras muito definidas, e lutaram por elas, a despeito das tentativas de desqualificação de uma sociedade que vive um paradoxo como tendência de fundo: quanto mais envelhece, mais se “juveniliza”, e por isso não sabe onde colocar os “velhos”. Sintoma dessa situação, a ideia de que “os 50 anos são os novos 40” – ou os novos 30, como se promete agora – corre em paralelo à afirmação de que a adolescência não terminaria antes dos 24 anos. Na melhor das hipóteses, admite-se que os adultos de hoje são fisicamente jovens, têm estilos de vida mais identificados com as faixas etárias inferiores (e não com as superiores), mas a pecha de “conservadores” aparece quase que automaticamente – algo como “conservadores de academia” (de ginástica, bem entendido).
Propomos uma outra leitura. Hoje, por conta desse mesmo movimento que o ODES já chamou de juvenismo sociocultural – e que implica, em última análise, em cuidar-se e preservar-se – o indivíduo procura o que é melhor para si, sem implicações com os ditames sociais e morais vigentes. Assim, esse é um aspecto do comportamento próprio do jovem, que se estende pela vida até a maturidade, e mesmo na velhice. Não se pode esquecer que os adultos de 50 e tantos anos de hoje cresceram e foram adolescentes nos anos 1960-70, quando a autonomia dos indivíduos em relação às regras sociais estabelecidas começou a se aprofundar, em direção ao hiperindividualismo.
Essa autonomia individual é uma figura central para entender o comportamento dos 35-59 anos. Ela se manifesta sob vários aspectos, e, politicamente, se traduz na rejeição às ideologias políticas que predominaram até o século XX, culminando na não identificação com as categorias que tradicionalmente organizavam o campo da política, direita e esquerda. Como todo o resto, na sociedade do capitalismo tardio, os indivíduos desregulam, misturam, desierarquizam e fazem o seu próprio mix daquilo que antes vinha separado, regulado, hierarquizado em compartimentos estanques.
Um sinal contundente desse novo comportamento político é que, mesmo no interior dos partidos, hoje, não há consenso sobre pautas, valores e reivindicações que antes se alojavam claramente à esquerda ou à direita – e os partidos têm cada vez maior dificuldade para enquadrar seus membros dentro de um ponto de vista uníssono.
Por outro lado, os próprios partidos perdem especificidade como agremiações que representem claramente determinadas posições. Antigamente, esse equacionamento era muito claro, e facilmente percebido pelo cidadão. Hoje em dia, diríamos que a falta de identidade dos partidos é inversamente proporcional à sua multiplicação.
À procura de um candidato
Ao analisar os números do instituto Datafolha, divulgados em 31/01, o jornalista Josias de Souza afirmou que “o eleitor entrou em parafuso”, pois, a poucos meses das eleições de 2018, “o futuro político do Brasil está nas mãos dos eleitores desanimados (votos brancos), irados (votos nulos) e desnorteados (indecisos)”, os quais somam 36% do eleitorado, segundo os dados.
As pesquisas eleitorais estão no centro de um amplo debate internacional sobre o alcance de suas metodologias e o valor explicativo de seus resultados. Mas não é esse o nosso ponto. “Desanimados” e “irados”, sim; sem saber em qual candidato votar, muito possivelmente; mas “desnorteado” é tudo o que o eleitor de hoje não é. De fato, o estudo Você, Cidadão revelou que o eleitor sabe exatamente quais são as características e o comportamento que ele quer para um candidato. Se ele as identifica nos políticos que se apresentam como opções até aqui, é uma outra história.
Que o eleitor afirme que o candidato ideal tem que ser honesto acima de tudo já não é exatamente um achado. Diante do oceano de corrupção que vem sendo revelado a cada dia, nem caberia outra expectativa. Junto com a honestidade, vêm a transparência, a sinceridade, a autenticidade, o respeito e a convicção, como atributos em destaque.
Como a crise ética da política é global, o risco é a redução da política a essa dimensão ética, como se “ser honesto”, em vez de condição sine qua non para começar a considerar a possibilidade do voto, se tornasse condição suficiente, ou programa de governo. Aliás, parece que, nos tempos que correm, a exigência ética veio preencher, precisamente, o vazio político. É porque não há opções, o governo não pode fazer tudo e as pessoas estão céticas sobre a capacidade de mudança da política, que elas se engajam em debates éticos, sobre transparência, honestidade e probidade, e também sobre causas identitárias, porque isso, de certo modo, preenche um vazio.
Entretanto, os cidadãos pesquisados não pararam nessa premissa, ao descreverem o seu candidato ideal. A valorização de alguém que possa “ser diferente”, “fazer diferente” ou “fazer a diferença” expressa, de um lado, a recusa pelo status quo da política atual e, de outro, o anseio de que os políticos mudem o seu comportamento, uma exigência que não se limita à questão da corrupção. Na verdade, ela toca dois outros pontos fundamentais: o respeito e a noção de autoridade. A reconfiguração dos valores em jogo, na realidade, é até mesmo mais importante para o eleitor de hoje do que os ideais e as causas defendidas por este ou aquele.
É simplista reduzir os ataques de fúria dos indivíduos, fartamente exibidos nas mídias e nas redes sociais, como ‘expressões de ódio’
O respeito é um valor absolutamente central no jogo atual entre eleitores, políticos e candidatos. Ou, na verdade, a falta de respeito, o sentimento que as pessoas têm de serem constantemente desrespeitadas, de que suas opiniões não são levadas em conta, de que a classe política se tornou, definitivamente, uma corporação profissional que defende, surdamente, os seus próprios interesses. Não é por outro motivo, aliás, que as pessoas insistem em manifestar o seu desrespeito público até mesmo pelas mais altas figuras da República. É simplista reduzir os ataques de fúria dos indivíduos, fartamente exibidos nas mídias e nas redes sociais, como “expressões de ódio”. A mensagem principal é outra, e é clara, levando ao segundo ponto destacado: a noção de hierarquia mudou, o cidadão empoderado sabe (e sente) que esse outro foi colocado ali para servi-lo. Na melhor das hipóteses, é um igual, cujo desrespeito com a coisa pública deve ser pago na mesma moeda. Salvo nos grotões que ainda persistem no País, acabou o tempo da reverência aos “doutores” e aos “coronéis”, o que é uma excelente notícia. Até aqui, a autoridade no Brasil era conferida automaticamente pela posição de poder ocupada pelo sujeito. Hoje, ao contrário, o cidadão reconhece a autoridade pelo respeito que ela inspira.
Outro aspecto fundamental exigido pelo eleitor é o preparo do candidato, expresso de diversas maneiras nas pesquisas que realizamos: ter “conhecimentos”, “nível de formação”, “compreender o sistema econômico”, “saber gerenciar” foram algumas das fórmulas usadas pelos pesquisados para resumir essa forte expectativa.
O eleitor está disposto a apostar todas as suas fichas em alguém capaz de realizar o que ele, eleitor, quer. Desse ponto de vista, não há espaço para aventureiros que não consigam provar a sua capacidade para o eleitorado – que, de seu lado, tem a possibilidade inédita de checar as informações fornecidas, em poucos cliques.
Depoimento
“Do feminismo, eu quero o direito econômico de não ter que passar roupa, fazer comida para os filhos, limpar a casa, porque sou mãe solteira e independente. Mas estou presa ao inferninho das donas de casa por questões econômicas. Só vou me libertar das amarras a que a mulher foi destinada quando a economia desse país for estável, com segurança jurídico-constitucional, com um estado sem corrupção. De discurso estou cheia, cansada, mas não acomodada dentro do meu universo. Batalho dignamente para progredir. Eu acredito num Brasil decente, acredito mesmo. Não falta muito pra gente se livrar desse bando que está aí – a renovação é obrigatória”. (A, 43 anos)
Do palanque às ações: o que quer o eleitor
O terror para os políticos é que, hoje, ações são definitivamente mais importantes do que a trajetória política. Não há mais discurso ou lábia política que sustente, por si só, uma candidatura. Os discursos têm que ter lastro. O eleitor não acredita mais no “eu estou aqui para resolver”. Ao mesmo tempo que a figura do político está desacreditada, o que conta em um candidato é o próprio indivíduo, o que ele fez até aqui, o que faz, como pensou até aqui, como pensa, se existem contradições em sua vida. Se a imprensa é a tradicional guardiã da democracia, as mídias digitais estão fazendo um rápido e profundo trabalho de desconstrução dos candidatos contraditórios (e de quem mais for preciso), muito mais importante, a nosso ver, do que o fenômeno das fake news. Contra o esquecimento como regra da política, o papel da memória, hoje, é desempenhado pela internet, e de modo muito mais poderoso e permanente.
Não é que o pedigree político tenha, de repente, perdido todo o seu valor. Nas últimas eleições legislativas, insistiu-se sobre o fato de que muitos deputados federais eleitos eram “filhos de” (sem contar os senadores de sempre). O passado político continua em alta – só que o eleitor não precisa mais que alguém lhe conte uma história, ele a terá ao alcance de um clique. A dimensão narrativa da política ganha, assim, uma nova importância, como tantas outras esferas contemporâneas em que o storytelling tornou-se indispensável. Não é por outro motivo que vemos os partidos contando e recontando a história sob o seu ponto de vista, frequentemente brincando com a verdade dos fatos. Daí, por exemplo, a necessidade de criar sites, blogs, ou mesmo de se servir das mídias para que essa “verdade dos fatos” se torne uma confirmação.
Como as marcas, que constroem e produzem a sua própria narrativa (o assassinato de Gianni Versace do ponto de vista da marca Versace, etc.), tornou-se comum fazer o cinema contar a história de alguém sob um ponto de vista único e exclusivo. Quer-se, desse modo, controlar a verdade, apresentando outra versão. Esquece-se, porém, que o eleitor não quer mais versões, pois ele também já tem a sua própria – o que ele busca é descobrir outros elementos que confirmem a sua versão.
De “esquerda versus direita” para “esquerda igual à direita”
No quadro atual do comportamento político, um dos fenômenos mais destacados é a perda de significado e de substância das correntes ideológicas tradicionais: a esquerda e a direita.
É claro que persistem algumas diferenças entre os partidários dos dois campos, como a ênfase nas políticas sociais e estatizantes, à esquerda, e nas políticas econômicas liberais, à direita. Porém, nem mesmo isso é uma característica distintiva exclusiva. Basta ver que, no interior do mesmo partido, frequentemente há opiniões divergentes sobre temas como o aborto, o porte de armas, a bolsa família ou as questões de gênero.
O novo ator político mescla, em uma nova síntese, posições antes inconciliáveis.
O novo ator político assume a mesma postura do consumidor diante do mercado. Para alguns, ele deve ser chamado de híbrido; para outros, seu comportamento é dialético; outros, ainda, dirão que ele é dialógico. O que importa é que ele mescla, em uma nova síntese, posições antes inconciliáveis, o que pode ser exemplificado por diversos ângulos. Ele quer leis mais duras para punir os crimes e a violência urbana fora de controle, mas também não é a favor de excessos e radicalismos que maculem os direitos humanos. Ele é a favor do direito de greve, mas não apoia a sindicalização do estado. Ele é a favor de reformas que ajudem a viabilizar o futuro do país, mas não admite perder direitos adquiridos. Acredita na modernização das leis do trabalho, mas não quer ser prejudicado – e assim por diante.
Outro sintoma da perda de especificidade dos polos direita-esquerda pode ser observado nas redes sociais. Em nosso estudo, um pesquisador monitorou sites, blogs, comentários e membros de redes sociais assumidamente de direita, e outro dedicou-se a monitorar os de esquerda. A conclusão é que os dois lados são praticamente idênticos, diferentes apenas na orientação que professam. Encontramos os mesmos argumentos, as mesmas informações, as mesmas acusações, as mesmas fake news – apenas com sinais invertidos.
Nenhum dos dois lados usa os necessários filtros em relação aos fatos, aos personagens e às notícias, de modo a tornar-se verdadeiramente independente (apesar de posicionado) e estabelecer confiabilidade com os indivíduos, que não se veem mais pertencendo a nenhum dos lados – 75% dos pesquisados, como o estudo atestou.
Além do desgaste da classe política, há uma outra tendência de fundo que ajuda a entender esse fenômeno. Como resultado do individualismo, as ideologias e as instituições (partidos, igrejas, estados, sindicatos, imprensa, etc.) perderam o poder que tinham, até o século XX, de dirigir as consciências e provocar clivagens no tecido social. Hoje, são os movimentos identitários que ocupam esse espaço. Questões como a defesa da natureza e dos animais, os direitos das minorias, o feminismo e outras questões de gênero, etc., são os maiores responsáveis pelos novos conflitos sociais. Não há, e nem pode haver, unanimidade nesses novos territórios, apenas arranjos precários em torno de acordos e desacordos transitórios. Quanto mais o individualismo avança, maior será o número de grupos formados em torno de questões identitárias e, portanto, mais numerosos e frequentes também serão os conflitos entre todos eles. Isto posto, é claro que estamos falando de democracias liberais pacificadas, sem derramamento de sangue, onde tais conflitos não vão muito além da (saudável) virulência da opinião contrária.
Além do mais, as ideologias são percebidas como camisas de força que engessam a visão de mundo. Os “times” que contam para o cidadão, hoje, são outros:
“Eu dividiria em outros dois times, o do bem, do respeito, e o do mau-caratismo” (M., 44).
Portanto, são equivocadas as análises que se baseiam na ideia de “guinada à direita” do eleitorado brasileiro (ou latino-americano). O que ocorre é que o pragmatismo que caracteriza a voz do meio, já tendo votado à esquerda nos governos anteriores e se sentindo decepcionada, coloca prós e contras na balança e deve votar, agora, com outro tipo de critério, já que aquele, efetivamente, não funcionou.
O eixo comportamento e política do estudo Você, Cidadão produziu, também, dados, informações estratégicas, análises e recomendações sobre os seguintes temas:
Análise comportamental: jovens x adultos.
O papel de outsiders e artistas.
Como o cidadão percebe as mídias e os jornalistas.
Os perfis de eleitores que emergiram do estudo Você, Cidadão.
Entenda quem é e como se comporta a “voz do meio”.
Conheça o “eleitor-consumidor”.
Informações: assessoria@observatoriodesinais.com.br